Brasília, 10 a 15 de maio de 1997
Durante toda a história da música sua realização
esteve ligada à utilização de instrumentos mecânicos.
As características peculiares desses instrumentos influenciam, de
modo direto, a maneira como se constrói a linguagem da música.
Na segunda metade deste século, a música eletroacústica
modifica radicalmente o papel do instrumento musical. Essa mudança
de papel se refere a muito mais do que ao surgimento de novas fontes de
geração do material sonoro: ela gera reflexos significativos
em toda a cadeia de produção musical, da criação
à difusão e audição. Este trabalho pretende
analisar como o conceito de instrumento se insere dentro do contexto da
música eletroacústica, de modo a apontar para uma revisão
da idéia tradicional de instrumento musical. Serão abordados
alguns pontos como o conceito de permanência instrumental de Pierre
Schaeffer, a questão da corporalidade na performance e a idéia
de meta-instrumentos. Finalmente, este trabalho termina com uma breve tentativa
de classificação dos instrumentos musicais eletroacústicos.
A história dos instrumentos musicais está estreitamente
ligada à história da linguagem musical. Sua evolução
tecnológica segue de perto as necessidades impostas pela produção
musical de cada época, em um constante refinamento de qualidade
sonora e melhora dos mecanismos de controle do som. O surgimento da música
eletroacústica alterou profundamente o a papel dos instrumentos
na produção musical, tornando necessária uma redefinição
do conceito de instrumento.
Os instrumentos tradicionais mantêm sua identidade através
do que Pierre Schaeffer chama de permanência instrumental (Schaeffer,
1966: 55; Smalley, 1992: 540), ou seja, a propriedade apresentada pelo
instrumento de ser reconhecido enquanto fonte sonora, independentemente
das variações de dinâmica, tessitura ou articulação
que acompanham a produção do som. Na maior parte das vezes,
sons provenientes de instrumentos da orquestra tradicional não deixam
dúvida em relação ao tipo de instrumento nem à
qualidade do gesto que os produziram.
Na música eletroacústica, entretanto, estas relações
não se mostram tão explícitas. Embora muitas vezes,
os sons criados eletrônica ou digitalmente possam apresentar características
acústico-morfológicas semelhantes às de um instrumento
tradicional, na maior parte dos casos, sons sintetizados destroem seu princípio
de identidade causal e tornando impossível associá-lo a algum
tipo de fonte ou gesto.
Os sons produzidos pelas tecnologias eletroacústicas (ao menos
quando esses não são apenas uma imitação do
som de instrumentos tradicionais) tornam-se, então, dúbios,
difusos, revelando-se como aparência que oscila entre a existência
no mundo real e a abstração de um mundo imaginário.
Eventualmente o ouvinte pode associar um determinado som eletrônico
a um tipo de fonte ou evento geral -- uma explosão, a fricção
de um objeto metálico ou o movimento de uma substância líquida
-- o que resgataria de certa forma uma identidade sonora. Mas um dos maiores
valores da produção eletrônica reside exatamente na
atitude oposta de gerar sons que resistem a qualquer tipo de referência
aos eventos sonoros geralmente experienciados no meio ambiente.
Segundo Denis Smalley, até muito recentemente, as expectativas
do ouvinte em um concerto eram limitadas a modelos familiares, fixados
pelo repertório e tradição musicais:
Antes da era da música eletroacústica [...] o ouvinte
podia assumir, mesmo ante de ouvir uma peça, que ela estaria baseada
no modelo de gesto instrumental, no modelo vocal, ou em ambos[...] Assim,
os limites e as fronteiras indicativas de uma obra musical não eram
apenas predeterminadas, mas em função da cultura, eram também
permanentes (Smalley, 1992: 544) .
Na música eletroacústica, ao contrário, não
há um confinamento a modelos instrumentais ou vocais. O compositor
é estimulado a criar novos campos sonoros e o ouvinte a desenvolver
estratégias de escuta que não faziam parte de seu repertório.
A ausência total de intérpretes, instrumentos, referências
visuais e gestuais, faz com que a experiência sonora seja expandida
radicalmente: "tudo permanece por ser revelado pelo compositor e descoberto
pelo ouvinte" (Smalley, 1992: 545) . O problema que se consiste nesse
caso é o de estabelecer, dentro da composição, um
balanço entre a exploração do potencial de imaginação
do ouvinte e a criação de campos indicativos que ofereçam
algum tipo de referencialidade ou unidade sonora.
Ao desviar o foco do gesto instrumental para a atitude acusmática,
onde se ouve o som sem que se veja a fonte, a música eletroacústica
tende a perder a dramaticidade gerada pela presença do intérprete
com sua gestualidade. Talvez, a dificuldade na reconstituição
desta dramaticidade, puramente por recursos eletrônicos -- o que
não deve ser visto, porém, como tarefa impossível
-- tenha atraído mais e mais compositores a incluir intérpretes
humanos atuando interativamente com o material eletroacústico de
suas obras.
A utilização de tecnologias eletrônicas na música
coloca uma nova questão em relação aos instrumentos
musicais. Nos instrumentos mecânicos tradicionais, o som produzido
estava intimamente ligado à três parâmetros:
1) conformação física: tamanho, forma e
modo de conexão entre as partes influenciam diretamente no tipo
de som produzido. Por exemplo, instrumentos de uma mesma família,
como o violino e o violoncelo, variam basicamente em função
de suas dimensões, e um contrabaixo elétrico sem trastes
no braço (fretless) possibilita efeitos impossíveis de se
conseguir num instrumento com trastes.
2) materiais empregados: os instrumentos musicais da orquestra
tradicional estão tão associados ao tipo de material de que
são feitos que são agrupados em função disso:
fala-se constantemente em instrumentos de cordas, madeiras e metais. Do
mesmo modo, instrumentos de percussão são agrupados por termos
como peles ou metais. Um mesmo instrumento pode soar completamente diferente
em função dos materiais empregados em seus componentes, daí
a constante preocupação dos músicos com a qualidade
dos materiais utilizados para produzir cada detalhe desses instrumentos,
das "canas" de que são feitas as palhetas de um oboé
ou clarinete, ao ratan usado como cabo para baquetas de um vibrafone ou
marimba.
3) modo de acionamento: todo instrumento acústico age
de modo semelhante: recebe algum estímulo mecânico -- um sopro
de ar, a fricção de um arco, o pinçar de uma corda
-- e por meio desse estímulo produz ondas vibrantes que deslocam
o ar à sua volta. O tipo de estímulo aplicado vai influir
diretamente no som produzido. Um contrabaixo tocado com um arco e o mesmo
instrumento tocado com pizzicato, por exemplo, produzem sonoridades diferentes
embora provenientes da vibração da mesma corda.
Para os instrumentos eletrônicos, entretanto, esses parâmetros
influenciam muito pouco, ou nada, no tipo de som produzido. Guitarras eletrônicas
podem soar como tambores e tambores podem reproduzir os sons de uma orquestra
inteira. Os instrumentos eletrônicos simplesmente rompem com as limitações
físicas que caracterizam os instrumentos mecânicos. Com isso,
quando se fala em instrumento eletrônico, faz-se referência
a uma série de componentes, mais ou menos independentes que são
conectados entre si para produzir o som.
De fato, os instrumentos eletrônicos são formados por
dois âmbitos distintos. Um deles é o controlador, ou seja,
a interface que irá disparar e controlar o comportamento do som.
Outro é o sistema de geração sonora, quer dizer, os
componentes que irão produzir o som propriamente dito. No instrumento
mecânico, esses dois âmbitos -- controlador e gerador sonoro
-- constituem uma unidade que não pode ser modificada sem alterar
os resultados sonoros, ou seja sem alterar o princípio de permanência
instrumental a que se refere Schaeffer. Por outro lado, no instrumento
eletrônico esses componentes possuem uma autonomia, total ou parcial.
Com isso, os gestos que acionam um controlador, não guardam necessariamente
uma relação direta e identificável com o tipo de som
gerado.
Quer dizer: os atuais sintetizadores, samplers, computadores e demais
"instrumentos" disseminados pela música atual, impõem
uma separação entre os mecanismos de produção
sonora e meios que controlam esses mecanismos. Um saxofone funciona com
um sistema único, em que o som é produzido pela interação
de vários fatores como os gestos dos músico, a pressão
que os lábios exercem sobre a palheta, a velocidade e o caminho
que o ar percorre dentro do corpo do instrumento, e assim por diante. O
instrumento funciona como entidade, corpo e alma inseparáveis na
produção do som.
Um sintetizador, porém, emitindo sons como os de um saxofone
é uma espécie de instrumento sem corpo. O som é processado
por meio de seus circuitos eletrônicos independentemente do dispositivo
que dispara esses processos. Um sintetizador pode ser acionado e controlado
por qualquer processo capaz de gerar um código que faça parte
de seu "vocabulário". Esse processo pode ser o movimento
de uma tecla, sinais digitais enviados por um computador, ou o movimento
dos olhos de um indivíduo, captados por algum dispositivo óptico.
O que interessa é que esses processos possam ser codificados e compreendidos
pelo sintetizador. E o elemento que executa essa tarefa não é
o instrumento em si, mas uma interface. Instrumentos tradicionais tem a
interface e o sistema de produção sonora reunidos num mesmo
e indissolúvel sistema (Figura 1). Um instrumento eletrônico
é um gerador universal de sons, um meta-instrumento (Wishart, 1992:
573) ao qual se acopla uma interface (Figura 2).
Figura 1: Nos instrumentos tradicionais, o sistema de geração
sonora e a interface que controla esse sistema formam uma unidade.
Figura 2: Nos instrumentos eletrônicos o sistema de geração sonora é independente da interface que o controla. Eles funcionam na verdade como meta-instrumentos.
Uma classificação dos instrumentos eletrônicos
deve levar em conta o fato de haver uma explícita separação,
nesses instrumentos, entre a interface e o sistema de geração
do som propriamente dito. Outra característica é a de que
a tecnologia atual permite que um mesmo sistema compartilhe diferentes
interfaces e se utilize de processos variados para a produção
sonora. Com essas questões em mente, podemos esboçar uma
classificação dos instrumentos eletrônicos, que seguiria
o seguinte esquema
1 - Sistema de geração sonora:
1.1 - por transformação
1.2 - por síntese
1.3 - por amostragem (sampling)
2 - Sistema de controle (interface):
2.1 Físicos
2.1.1 - interfaces geradas a partir de instrumentos acústicos
2.1.2 - interfaces modeladas a partir de instrumentos acústicos
2.1.3 - novas interfaces
2.2 Conceituais (formais)
2.2.1- linhas de comando
2.2.2- interfaces gráficas
2.3 Biológicas
1 - Sistemas de geração sonora: referem-se ao
modo de produção das ondas acústicas do instrumento.
1.1- por transformação: partem de um som ou representação
desse som preexistente para transformá-lo em um outro signo acústico.
Um dos primeiros movimentos a explorar de modo sistemático os processos
de transformação sonora foi a .i.musique concrète;
no final dos anos 40.
1.2 - por síntese: produzem artificialmente um sinal
que irá produzir características acústicas específicas.
Um dos primeiros sintetizadores de som de que se tem notícia foi
o Singing Arc inventado por Willian Duddell em 1899 quando foi contratado
para achar um modo de estudar e eliminar o ruído proveniente de
um novo sistema de iluminação pública (Mackay, 1981:
11) . Em 1966, os engenheiros norte-americanos Robert Moog e Donald Buchla
lançaram independentemente e quase simultaneamente as primeiras
versões comerciais de seus sintetizadores baseados em transístores
que controlavam a voltagem de osciladores, ao mesmo tempo, Max V. Mathews
criava nos laboratórios da Bell Telephone os primeiros programas
de computador dedicados à síntese sonora, o MUSIC III. Gradualmente,
os sintetizadores analógicos foram sendo substituídos por
processos digitais de síntese.
1.3 - por amostagem ou sampling: técnica digital imaginada
pela primeira vez por Alec Reeves por volta de 1938 e denominada PCM (Pulse
Code Modulation) (Davies, 1989) consiste em medir discretamente a amplitude
de uma onda sonora a intervalos constantes. A seqüência de valores
obtidos pode ser então armazenada, modificada e usada para recriar
uma onda sonora.
Figura 3: Classificação dos instrumentos eletrônicos
segundo seu sistema de geração sonora.
2 - Interfaces: os diferentes tipos de geradores sonoros
requerem algum tipo de interface controladora para desempenhar a função
de um instrumento musical.
2.1 - Interfaces Físicas:
2.1.1 - baseadas na extensão eletrônica de um instrumento
mecânico: os sons provenientes das vibrações geradas
pelo instrumento são captados e processados eletronicamente de modo
a expandir as possibilidades oferecidas originalmente por esse instrumento.
Exemplos são os violinos eletrônicos ZETA ou o Yamaha Disklavier
que funcionam como instrumentos acústicos ao mesmo tempo que geram
informação digital (MIDI). (outros exemplos Trumpet MIDI
System; de Dexter Morril e o celleto, de Chris Chafe)
2.1.2 - modeladas a partir de um instrumento mecânico:
são interfaces inspiradas em instrumentos tradicionais, porém
são usadas para controlar um sistema eletrônico de geração
sonora. A mais comum o teclado semelhante ao do piano usado na maioria
dos sintetizadores disponíveis no mercado. Outros exemplo são
o WX11 da Yamaha que simula o funcionamento de um instrumento mecânico
como um saxofone; ou o MalletKAT que funciona como uma marimba ou vibrafone
eletrônico.
2.1.3 - novas interfaces: ampliam os modos de controle de geração
sonora pelo interprete e não estão baseadas nos modelos clássicos
de instrumentos. Exemplos são o Theremin; o Radio Drum (Boie, Hill,
& Schloss, 1989) que consiste em uma superfície retangular plana,
como a de um tambor, que contém um conjunto de antenas sensíveis
à capacitância de ondas eletromagnéticas que registram
o movimentos de duas baquetas especiais; O Buchla Lightning (Rich, 1991;
Rich, 1996) consiste de dois bastões que contém transmissores
de luz infravermelha cuja posição no espaço pode ser
registrada por uma unidade colocada à distância.
2.2 Interfaces Conceituais (formais): (Dodge & Jerse, 1985:
63) estão ligadas ao desenvolvimento do computador e separam o conceito
de instrumento da interface física
2.2.1 - linhas de comando: os primeiros desses instrumentos
virtuais foram implementados na linguagem MUSIC V na qual o compositor
digitava os algoritmos e os dados a serem processados pelo computador.
2.2.3. - gráficas: programas que criam ambientes gráficos
para a manipulação sonora. Exemplos são programas
como o Turbo Synth (Digidesign), o SuperCollider (McCartney, 1996) desenvolvido
por James McCartney na Universidade do Texas e o LiSa (Life Sampling) (1995),
um ambiente de manipulação de áudio em tempo real
desenvolvido por Michel Waisvisz e Frank Baldé da Steim Foundation
em Amsterdam.
2.3 - biológicas: interfaces que captam sinais biológicos
para produzir ou controlar sons. Compositores como Alvin Lucier, Richard
Teitelbaum e David Rosenboom vêm trabalhando, desde o final dos anos
60, com o uso de sensores para captar impulsos provenientes das ondas eletromagnéticas
do cérebro, o batimento do coração ou o ritmo da respiração
para usar esses dados como material na criação de composições
musicais (Rosenboom, 1976) . O compositor David Rosenboom vem desenvolvendo
nas últimas três décadas um trabalho onde sinais biológicos
são utilizados interativamente para gerar música baseado
no princípio de biofeedback.
Figura 4: Classificação dos instrumentos eletrônicos segundo seu sistema de controle ou interface.