X Encontro Anual da ANPPOM
Goiânia, 27 a 30 de agosto de 1997
O Fonógrafo, o Computador e a Música na Universidade
Brasileira(1)
Prof. Dr. Fernando Iazzetta
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e
Semiótica
R. Ministro Godoy, 969 - sala 4B-06
São Paulo - SP - 05015-901 - BRASIL
e-mail: iazzetta@exatas.pucsp.br
http://www.pucsp.br/~cos-puc/users/iazzetta
Durante toda sua história milenar a realização musical
esteve sujeita à existência de uma condição simples,
porém necessária: a presença, no momento de sua realização,
de alguém que executa e de alguém que ouve. As variações
dessa condição que podemos chamar aqui de condição
de performance, são muitas: aquele que toca e aquele que ouve podiam
ser a mesma pessoa, ou a execução e audição
podiam estar a cargo de grupos distintos de pessoas. De qualquer modo, porém,
a presença de músicos e ouvintes durante a realização
musical era uma condição tão determinante que não
ocorreria a ninguém a idéia de questioná-la. Não
pelo menos até o final do século passado.
Quando Tomas Edison inventou o fonógrafo em 1877, essa situação
se transforma radicalmente. Os primeiros fonógrafos permitiam gravar
sons em um cilindro metálico e reproduzí-los inúmeras
vezes no futuro. Pela primeira vez na história da música era
possível executar e ouvir música independentemente da presença
de um músico ou de um ouvinte. Mais ainda, essa música podia
ser reproduzida em épocas e contextos totalmente diferentes daquele
onde ela fora gravada originalmente, eliminando assim aquilo que chamamos
de condição de performance. Essa idéia, que hoje pode
parecer trivial, seria algo inconcebível para os sujeitos daquela
época cuja experiência havia vinculado a existência da
música à ocorrência de uma performance.
Isso tanto é verdade que ao criar o fonógrafo, Edison pode
vislumbrar uma série de funções para seu invento, entre
elas, a realização de cartas e documentos falados, a transmissão
de conversas telefônicas pré-gravadas, o registro da fala de
pessoas importantes ou de membros da família, e anúncios sonoros,
mas não pode sequer cogitar seu uso para a realização
musical (Thompson, 1995). Foram necessários mais de 20 anos para
que o fonógrafo encontrasse sua função de provedor
de música e tornar-se, nas primeiras décadas desse século,
um aparelho familiar a todos que se interessavam por música.
O que há por trás dessa mudança de uma situação
onde a performance era uma condição necessária para
uma situação onde essa condição já não
é imprescindível e nem mesmo freqüente, é uma
mudança na maneira de se compreender a música. Até
o século passado a música era pensada como ação,
como algo a ser realizado e experienciado física e concretamente
no tempo e no espaço. Neste século a música cada vez
mais se distancia desse conceito de ação para se aproximar
da idéia de algo que se ouve e se conhece intelectualmente e de modo
abstrato. A música deixa de ser algo para ser feito e passa a ser
algo para ser ouvido.
Durante muito tempo essa nova maneira de se realizar música sem
a intermediação da performance foi alvo de críticas
e discussões as mais diversas. Alguns, entusiasmadamente acolheram
a possibilidade de se gravar música em um disco como um fato singular
e enriquecedor da linguagem musical, especialmente por dois motivos: primeiro
porque o disco iria democratizar o acesso à música, já
que podia ser tocado em qualquer lugar e por qualquer pessoa; segundo porque
através do disco podia-se travar contato com músicas de outros
países e outras culturas, o que levaria a uma espécie de universalização
da mesma. Outros, menos otimistas acolheram a idéia de se ouvir uma
gravação com grande restrição. Para esses, a
música reproduzida pelo disco era mecânica, fria e vazia de
expressão. A literatura sobre música da primeira metade do
século é rica em discussões a respeito desse assunto.
O compositor Béla Bartók (1881-1945), ele mesmo um entusiasta
do uso dos novos meios de gravação e reprodução,
especialmente devido aos benefícios trazidos por esses meios ao estudo
da música folclórica preocupava-se com a crescente substituição
das apresentações musicais em concerto pela chamada música
mecânica, e advertia para o seu caráter artificial:
A gravação em um gramofone tem com a música
que a originou a mesma relação que a fruta enlatada tem com
a fruta fresca; uma não contém vitaminas, a outra sim. Música
mecânica é uma manufatura industrial; música ao vivo
é um artesanato individual (Bartók, 1976: 298).
Assim como Bartók, Boris Schloezer em um artigo de 1931 intitulado
Man, Music and the Machine compara a música trazida pelo rádio
ou reproduzida pelo fonógrafo com a introdução da comida
enlatada: "O que é um disco gravado? No fim das contas, é
a música enlatada" (Schloezer, 1931: 7). Mas, ao contrário
da postura de Bartók, Schloezer vê a comida enlatada (e, por
analogia, a música gravada) como "excelentes" substitutos
dos produtos 'naturais'.
Passados mais de 100 anos da invenção do fonógrafo
vivemos uma situação peculiar: embora cada vez menos pessoas
tenham contato com a música diretamente através da performance,
e embora mais e mais o número de pessoas que faz música diminui
em relação ao número daqueles que apenas a ouvem, nosso
sistema de ensino musical universitário ainda insiste em olhar para
música segundo um modelo que seria perfeitamente aceitável
a 100 ou 200 anos atrás, mas que se mostra hoje grosseiramente equivocado
ao ignorar os processos tecnológicos que fazem parte da produção
musical e os contextos onde se realiza a escuta dessa música.
Não é preciso nenhuma perspicácia para notar que
modelos de performance surgidos no classicismo e romantismo não atendem
as manifestações da arte contemporânea e que a instituição
da sala de concertos com todo seu ritual burguês já não
é o local mais comum nem apropriado para se apreciar diversas formas
de música. Entretanto, o ensino de música no Brasil continua
a ignorar a existência desse um novo contexto de realização
musical.
Embora nunca se tenha produzido e difundido tanta música como hoje,
e talvez mesmo por esse motivo, cada vez mais a situação da
performance ao vivo se torna um fato raro e é necessário que
surjam novos meios para a difusão musical, bem como que haja o interesse
de se fazer música apropriada para esses novos meios. Em função
da quantidade de signos que são produzidos hoje em dia e da rapidez
com que esses signos são difundidos, o modelo artesanal de realização
da música já não é capaz de sobreviver, a não
ser em associação aos outros meios que dominam a produção
e circulação da cultura atual, como os meios de telecomunicação,
a informática e as mídias eletrônicas.
A despeito de tudo isso, se depender da maioria dos nossos cursos superiores
em música, um aluno pode se formar após 4 ou 6 anos de faculdade
sem nunca ter tido uma única aula sobre como se comportar com seu
instrumento dentro de um estúdio de gravação, sobre
como compor uma trilha musical para um filme, sobre o papel do som em um
ambiente multimídia, ou sobre como usar o computador para escrever
uma partitura. Esses não são procedimentos que se utilizam
de meios radicalmente novos de tecnologia, ou que se empregados apenas em
manifestações mais experimentais da vanguarda. Esses são
procedimentos que fazem parte do dia a dia do músico profissional
de qualquer esfera. Mesmo um instrumentista tocando num grupo de música
antiga com instrumentos de época, cedo ou tarde se verá envolvido
em uma gravação para um programa de rádio ou de um
CD, por exemplo, e fatalmente irá se ressentir de nunca ter aprendido
a utilizar um microfone.
A situação é mais incômoda se o músico
está engajado nas práticas musicais contemporâneas.
Seja no campo erudito, seja no campo popular, a produção musical
atual está hoje tão ligada às tecnologias eletrônicas
e digitais quanto a música do século passado dependia do artesanato
da lutheria e da tecnologia mecânica dos instrumentos tradicionais.
O computador e outros aparelhos eletrônicos já não são
meros objetos de desejo de aficionados, mas compõem neste fim de
século a densa teia de nossa cultura de modo quase omnipresente,
e obviamente a esfera musical não é uma exceção
nesse sentido.
Deve ficar claro aqui que não há a intenção
de se fazer um discurso que sublinhe a superioridade desse ou daquele modo
de se fazer música, menos ainda de tentar contrapor a música
de uma época à de outra. Mesmo porque a evolução
de uma linguagem tão rica e complexa como a da música, pouco
se ressente desse tipo de discussão. Trata-se simplesmente de reconhecer
que a maneira como se encara hoje o fazer musical dentro da universidade,
em especial a brasileira, cada vez mais se distancia da sua prática
real.
A partir da década de 50, a difusão do uso de computadores
modificou nitidamente a produção em diversos setores da sociedade
-- da indústria aos meios de comunicação. No caso da
produção musical esse quadro não é diferente.
Especialmente durante os anos 80, com o barateamento da tecnologia digital
e o aperfeiçoamento e disseminação de programas específicos,
boa parte das atividades musicais esteve, de um modo ou de outro, conectada
a algum tipo de utilização de recursos de informática.
Hoje em dia, o uso de computadores na área musical está
bastante consolidado e já existe um substancial corpo teórico
formado sobre temas que cobrem desde discussões ético-estéticas
a respeito do papel do computador na música, até um vasto
número de estudos nas áreas de engenharia de hardware específicos
para a área musical. De fato, nos últimos anos inaugurou-se
uma nova fase na utilização de computadores dentro da produção
musical, que pode ser distinguida por alguns fatores mais salientes:
- barateamento e conseqüente difusão do uso de computadores
na produção musical a nível individual, bem como dentro
de um grande número de instituições, universidades,
estúdios e centros de pesquisa;
- aumento substancial na capacidade de processamento e armazenamento de
dados, possibilitando o tratamento e manipulação de dados
mais complexos e a execução de processos em tempo real;
- surgimento de aparelhos periféricos dedicados à manipulação
de som e imagem (discos de leitura ótica, placas digitais geradoras
de som ou equipamentos de multimídia) capazes de processar sinais
de fontes convencionais analógicas, como gravações
em fita magnética, vídeo ou fotografia, com qualidade e facilidade
surpreendentes;
- proliferação de software que auxiliam em diversas fases
da produção musical, da composição à
execução, passando pela análise musical, geração
de timbres e gravação
Essa fase caracteriza-se essencialmente pela aproximação
entre o usuário e a máquina e pela possibilidade de simulação
de processos musicais, via utilização de recursos digitais.
Essas questões introduzem, por sua vez, um tema que parece estar
profundamente ligado à produção musical atual e, de
certa forma, também à outras formas artísticas: os
processos de interação na música feita com computadores.
Embora a música sempre tenha sido, em sua essência, uma arte
interativa, a questão da interação se faz realçar
neste momento em função das transformações que
acompanham o uso regular de novas tecnologias eletrônicas e digitais
nas últimas décadas. O problema da interação
está intimamente ligado não apenas ao atual desenvolvimento
tecnológico que envolve a produção musical, mas também,
ao período de consolidação de novos paradigmas que
se processam dentro das linguagens artísticas de um modo geral após
um período de profusão de idéias e experimentação
que se distende entre o pós-guerra e os anos 70.
O que parece se estabelecer agora é uma espécie de filtro
de toda a produção gerada a partir dessa fase "experimental",
onde alguns procedimentos começam a se fixar dentro da linguagem
musical. De modo sucinto, isto se faz notar na retomada de alguns procedimentos
clássicos (modalismos e neo-tonalismos), na criação
de obras de caráter funcional (música para ambientes), na
reaproximação da música com outras formas de linguagem,
como representação, dança, texto (poesia sonora e teatro
musical), e na exploração diversificada de novos recursos
tecnológicos (aplicações em multimídia, música
digital e eletroacústica).
Nota-se neste momento uma aproximação direta não
só entre música e público, mas, a partir do uso do
computador, entre música e usuário. As novas ferramentas digitais
estão transformando radicalmente o modo de relação
com o universo sonoro na medida em que proporcionam, seja ao compositor,
seja ao ouvinte, novas maneiras de interagir na produção musical.
Se já são bem conhecidas as utilizações dos
recursos digitais na área da produção musical (composição,
análise, execução e síntese sonora), a atenção
se volta agora ao aprimoramento da interface entre essas utilizações
e seus usuários, sejam eles músicos especialistas ou apenas
ouvintes.
Outra peculiaridade trazida pelos ambientes computacionais refere-se a
um modo novo de produção e difusão cultural: o ciberespaço.
Esse ambiente é representado pela Internet e seus diversos protocolos,
em especial, a World Wide Web (WWW) vem sendo explorado sistematicamente
nos últimos 3 ou 4 anos para a criação de novos ambientes
de criação, difusão e, especialmente, pesquisa musical.
No Brasil, ao contrário do que vem ocorrendo em um grande número
de universidades e centros de pesquisas espalhados pelo mundo todo, salvo
raras exceções(2) , não se observa nenhum esforço
para tirar proveito das possibilidades que a rede mundial de computadores
pode oferecer à música.
Existe uma estreita relação entre a música produzida
neste final de século e o desenvolvimento de novas tecnologias eletrônicas
e digitais de produção sonora. Ignorar esse fato, como tem
feito boa parte da musicologia e do ensino musical brasileiro, de modo algum
diminui a importância desta relação. Ao contrário,
aponta para o fato de que novos modos de abordagem e compreensão
musical têm de ser estimulados para se dar conta dos novos processos
de produção e consumo. A música, como qualquer linguagem,
é algo vivo, que cresce e evolui por si só. A teoria tem muito
mais poder para desvendar do que para interferir nesse processo. Tentar
negar as mudanças em uma linguagem através do apego às
fórmulas conhecidas e bem estabelecidas pela tradição,
é o último recurso de uma teoria que não pode mais
dar conta plena de seu objeto.
É sintomático que, no Brasil, as tentativas de explorar
a relação da música atual com novas tecnologias e novos
contextos de produção freqüentemente ocorrem fora dos
Departamentos de Música. Nosso caso na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP) é bastante ilustrativo.
Dentro do programa de pós-graduação em Comunicação
e Semiótica estamos montando um grupo bastante incomum dentro do
ambiente universitário brasileiro. Nos últimos anos esse programa
vem atraindo músicos de diversas áreas que, insatisfeitos
com as oportunidades oferecidas em outros departamentos de musica do país,
escolheram o Programa de Comunicação e Semiótica da
PUC-SP para desenvolver seus trabalhos. Atualmente o programa mantém
um Centro de Linguagem Musical (CLM) e um Laboratório de Linguagens
Sonoras (LLS) que está entre os mais bem equipados do Brasil, além
de agregar mais de 20 pesquisadores entre mestrandos, doutorandos e bolsistas
de iniciação científica, que atualmente desenvolvem
trabalhos de pesquisa e criação musical.
Esse exemplo da PUC-SP aponta nitidamente para a necessidade de se reconfigurar
os programas de pesquisa e ensino dos departamentos de música no
Brasil, indo de encontro à inércia de uma musicologia e sociologia
da música presas em um contexto que há muito deixou de existir,
e permitindo aos alunos e pesquisadores uma formação mais
adequada à riqueza da realidade musical contemporânea.
Notas:
1 - Este texto foi realizado com o apoio da Fapesp e do Centro
de Linguagem Musical da PUC-SP.
2 - Nesse contexto é extremamente louvável que o IV Simpósio
Brasileiro de Computação e Música realizado entre 4
e 8 de agosto de 1997 em Brasília, tenha elegido este ano o tema
"Música e Tecnologia de Redes", mostrando que alguns setores
estão notando a importância dessa questão.
Referências Bibliográficas
- Bartók, B. (1976). Mechanical Music. In B. Suchoff (Ed.), Béla
Bartók Essays (pp. 289-298). New York: St. Martin's Press.
- Schloezer, B. de (1931). Music, Man and the Machine. Modern Music, VIII(3),
3-9.
- Thompson, E. (1995). Machines, Music, and the Quest for Fidelity: Marketing
the Edison Phonograph in America, 1877-1925. The Musical Quarterly, 79(1),
131-171.